quinta-feira, 27 de julho de 2017

O Livro dos Encantos


Desengane-se quem achar que os muitos livros que leio me tornam mais inteligente ou mais culta. Nada disso, passados algum tempo não consigo discorrer sobre os temas ou enredos lidos. Tal como nas histórias da minha vida, restam-me apenas sensações. Se no passado, esta erosão me afligia um pouco, hoje faço fé de que algures, na minha pele, se alojam todas as histórias e factos vividos e lidos.

Aquilo que busco nos livros é, num perpétuo movimento retroactivo, algo que alimente a minha sede de viver e saber. As minhas leituras empurram-me para a vida; a vida escorraça as minhas aspirações, regresso aos livros e estes devolvem-me novamente à vida, como um cavalo belo e novo, pronto para qualquer luta ou descanso.

Busco encantos, como uma amazona teimosa. E onde estes se anicham, nunca sei, é uma caça interminável. É preciso ler muitas páginas, às vezes livros inteiros, para encontrar numa frase um farrapo de alma. Esse farrapo não é apanágio apenas dos livros, também pode acontecer através de outras artes, ou na vida, por exemplo, através de uma frase anónima e sorrateira.

Acontece por exemplo quando estou ensonada no sofá, numa manhã moribunda de sábado, a ver um programa sobre a vida selvagem no deserto Sahara e, de súbito, descubro a rosa de Jericó. Esta rosa cresce e reproduz-se até que o ambiente se lhe torna hostil. Então, as suas flores e folhas secam, as raízes desprendem-se da terra, os galhos secos enrodilham-se e a rosa transforma-se numa «bola», permitindo que os vento a levem. Assim pode viajar durante anos, cem anos se preciso for, quilómetros e quilómetros, vivendo ressequida e sem uma única gota de água. Até encontrar água. E voltar a verdejar e florescer. Foda-se, que poema brutal!

Por tudo isto e sobretudo por que a minha memória é curta, criei no início deste ano um pillow book, onde anoto os arrebatamentos que me encontram, sempre que me lembro de fazer. Chama-se Livro dos Encantos e tem a ridícula pretensão de anotar uma ínfima parte da beleza do mundo. Até tem duas epígrafes: uma de Rilke e outra dos diários de Etty Hillesum, também leitora de Rilke. Etty morreu em Auschwitz. Pouco tempo antes, escreveu:

And still life makes sense to me, my God, I cannot help it.
(...)
I have died a thousand deaths in a thousand camps. I know it all and I do no longer get upset over new information. Somehow I already know it all. And still I find this life beautiful and full of meaning, every minute of it.

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