sábado, 27 de fevereiro de 2016

Vó (1924-2016)


morfolofalando


adeus pêlo lento. adeus Micas de luas exactas.
adeus estilhaço do teu olhar no meu gosto.
adeus o que ouço incendiado e beijo às avessas e inútil.
adeus aquele ruído do sexo nos lençóis do retrato.
adeus o que em mim sabe sacramamentado na boca.
adeus o que dói no talento frágil do sangue
ou é sobretudo perder-te cem por cento na cama.
merdaputice de nutrição revolucionariamentemerda.
ah (meus caros) adeus na retrete.
(mínimo e sujo) pouco de futuro
por entre o mau cheiro das nutridas granadas.
adeus antes do cansaço de parecer só macho
ou fêmea ou pederasta ou português.
adeus dona Verónica à janela morrendo um
astro entre o pudorinado das pernas.
dona Verónica o que é que importa? para quê
as travessas quando as criadas já não amanhecem?
as horas cercadas? a estranha madeira dos gestos?
aquele gajo que me mandou para a puta que o pariu?
a altura do acaso nos pulsos ou aquela canção que já não presta?
para quê dona Verónica? para quê?
claro que só sei o não do que tanto acontece:
telegrama de espanto
rasto de cornos
loucura de nata.
dona Verónica não vale a pena (garanto)
a lua se pôr de prata.
para que serve essa bandeira metade camisa metade salsa?
não será melhor encher por fora todos os sacos?
ahhhhh (meus amigos) trago comigo a desfraldada
mágoa dum animal secreto: ânsia tesa no sexo.
escondo-me dos guardas e da fomerda dos outros.
são uns sacanas todos
pedem-me o passaporte que mijado já não serve.
adeus amigos. vou ser parecido a mim próprio
com fulaninhas de leitamas e os pés em flash-back.
com toucinho e mostarda e bem sentado à mesa.
enrascado nas calças (é certo) mas de paladar correcto
para reclamar o prato que já não faz falta.
e se me sai a lotaria vou p'rá cama com
os repolhos da criada e compro mamas na praça.
assim mesmo (raios me partam) semelhante
de maçada e caspa com licença e bagaço.
mas (concerteza) nojento e parecido
de baba e paisagem nesta chatice com céu e gravata
em tudo que não me importa.
sem dúvida que trago o bilhete
com a alma descascada na paragem do autocarro.
e estou-me nas tintas: libertarde e caspa.
ou espermaneço rasca no tesão duma maneira
que certamente já não se pode.
adeus Ferreira e a tua sociedade plutocaca
com meninos sacanas e donzelas de fina lata.
mas contigo Fagundes é um tanto diferente:
eras pela revolução pela limpeza pela luta
e fazias estátuas de alegria e
mapas de pura aragem sobre as mesas das tascas.
é claro que ouço: os militares marcham
a escada sobe e a rua passa.
adeus Juca prémio de ti mesmo no
calendário da tua presença. foste para mim o espaço dum
espelho exactamente atrás da porta. sabias?
e um estupor também.
adeus Juca pela clara indecência
com que te puseste na minha memória.
sei que estás vivo no céu do teu auto-retrato
com gajas boas e as cricas e as fufas
e as garotas inventadas de dias e buracos.
e trazes o teu fantasma cornudo de lume
na ocasião em que fornicas. adeus amigo.
poooooooooooooooooorrrrrrraaaa: tudo p'ró penico.
nada de adjectivos nem gramamamática
em nenhuma ocasião.
adeus velhos amigos cozinhados de audácias
e caras enfeitadas com segredos de pissas.
não vou partir nem ficar. nem cus nem tomates.
nada de ilusões. não há muito para desentender:
vamos ao médico ou não temos pressa.
mas talvez não se passe de novo do povo ou do insecto
no fato
com a verdade pouca na máquina de lavar roupa.
talvez com cagaço e azeite e ocidental e direito.
ou mamas com grão mesmo frias e da véspera.
será que o essencial fica emprestado ou no céu do quarto
ou então no assombro de perfil com água errada na gaveta?
ou mesmo que haja outra lâmpada no estilo do gosto
o mais importante (acredita) vai dos dedos até à garganta.
depois deito-me usado na cama:
cachorro coitado do rabo até à cabeça
com esta puta da vida que nunca me basta.

António Aragão
PÁTRIA. COUVES. DEUS. ETC.

Vós, os mesquinhos e os tacanhos de espírito


Nunca tinha lido nada de Flannery O’Connor. Durante seis anos, olhei de tempos a tempos a lombada de UM BOM HOMEM É DIFÍCL DE ENCONTRAR, concordante e de sorriso irónico, mas só recentemente me atrevi a tirá-lo da estante e a lê-lo.

Não posso dizer que tenha sido uma leitura feliz – os dez contos parecem retirados de um velho testamento sulista, como um catálogo de pecados capitais e outros menos capitais mas nem por isso menos fatais. A teimosia, a soberba, a luxúria, a avareza, a cobiça, o egoísmo e o racismo repetem-se nas várias histórias e também as personagens se assemelham de uma para outra. As proprietárias das fazendas tendem a ser mulheres sozinhas, de espírito tacanho e contraído, rodeadas por uma empregada ou amiga quadrilheira e por uma filha embirrenta e antipática. Na maioria das vezes, a desgraça chega anunciada por um visitante estranho que se apresenta como pessoa simples e afável (oh, que um deus qualquer nos mantenha a salvo dos simples e da «gente sã do campo»).

Os afectos produtivos ocupam pouco espaço e todos parecem infectados por ideias fixas, quais mulas arreigadas nas suas crenças e preconceitos. Não simpatizamos com ninguém em particular e pressentimos a desgraça – as situações descambam nos contos de O’Connor e de que maneira! -, vertiginosa e inclemente que se aproxima. Ainda assim, imploramos alguma misericórdia mas é tarde demais: «já nada é como costumava ser, o mundo está quase podre». No meio de tantas desgraças, somos de quando em brindados com frases assombrosas: «Sou tão bom como tu em qualquer dia da semana» ou «Teria sido uma boa mulher se tivesse estado lá alguém para a matar em cada minuto da vida dela.»

Todos os contos são geniais – Flannery O’Connor é mestra na sugestão de atmosferas e psiques – mas a minha predilecção vai para dois deles, O Preto Artificial e A Gente Sã do Campo. Em ambos, o castigo abate-se sobre a soberba das personagens. O Preto Artificial é único conto com um final mais luminoso, com a sobranceria do avô e do neto a serem derrotados pela misericórdia.

Olhavam para o preto artificial como se se confrontassem com um mistério profundo, um monumento à vitória de outrem que os reunia na sua derrota comum. Ambos podiam sentir o efeito do mistério dissolvendo os seus antagonismos como um acto de misericórdia. Mr. Head nunca soubera antes o que era o sentimento de misericórdia porque sempre fora demasiado bom para precisar dela, mas reconheceu-a imediatamente. Olhou para Nelson e compreendeu que devia dizer uma coisa qualquer que demonstrasse que a sua sabedoria não desaparecera, e no olhar que recebeu do rapaz identificou uma necessidade imensa dessa garantia. Os olhos de Nelson pareciam implorar-lhe que explicasse de uma vez por todas o mistério da existência.
Mr. Head abriu a boca para fazer uma declaração solene e ouviu a sua própria voz a dizer: «Não têm cá pretos que cheguem, precisam de criar um preto artificial.»
Depois de um segundo o rapaz acenou afirmativamente com um estranho tremor na boca e disse: «Vamos para casa senão ainda nos perdemos outra vez.»


Em suma, Fannery hits you hard!

Rimbaud, meu amor


Os anos passam. Mais de duas décadas a ler-te e, embora me continue a acercar das tuas palavras com o mesmo sentimento de solenidade profana, parece-me que a cada novo encontro adivinho um pouco mais do teu mistério.

UMA CERVEJA NO INFERNO

Outrora, se estou bem lembrado, a minha vida era um festim em que todos os corações se abriam, em que todos os corações se abriam, em que todos os vinhos cintilavam.
Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. – E vi que era amarga. – E injuriei-a.
Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, foste vós a guarda do meu tesoiro!
Consegui destruir em mim toda a esperança. Contra toda a alegria lancei o bote cego da besta feroz. Estranguladas!
            E chamei os carrascos para morder, na agonia, a coronha dos fuzis. Conjurei as pragas para sufocar na areia, mergulhar em sangue. O infortúnio foi o meu deus. Estiracei-me na lama. Sequei ao ar do crime. E preguei boas peças à loucura.
            E a primavera trouxe-me a terrível risada do idiota.
            Ora, ultimamente, prestes a lançar à cara do planeta o derradeiro estalo, lembrei-me de ir buscar a chave do festim (talvez me regressasse o antigo apetite?).
            Caridade – é a chave. Uma inspiração destas prova que sonhei!
            «Permanecerás hiena, etc…», ruge o demónio que me coroava de tão amáveis papoilas. «Morre feliz ao lado dos teus apetites, com todo o teu egoísmo, com todos os melhores pecados capitais.»

            Ah! tomei tanto disso… – Mas, meu caro Satã, não carregueis tanto o sobrolho! e enquanto esperais ainda uma que outra miséria vinda atrasada por motivo de obras, vós, que apreciais no escritor a mais selecta ausência de faculdades descritivas ou pedagógicas, aqui tendes para já, especialmente arrancadas, estas odiosas folhas do meu canhenho diário de danado.

Susan Sontag


«Pelo contrário, para mim teria sido um esforço enorme não pensar no assunto. A coisa mais fácil do mundo é pensar no que está acontecendo com a gente. Você está lá, no hospital, pensando que vai morrer, e não pensar sobre isso teria exigido de mim um desprendimento enorme (…). Olha, o que eu quero é estar presente por inteiro na minha vida – ser quem você é de verdade, contemporânea de si mesma na sua vida, dando plena atenção ao mundo, que inclui você.
(…)
Uma vez me disseram que você costumava ler um livro por dia.
Eu leio em excesso e de maneira muito descuidada. Adoro ler, do mesmo modo que os outros gostam de ver televisão, e de certa forma, eu adormeço assim. Se estou deprimida, abro um livro e me sinto melhor.
Como escreveu Emily Dickinson: “Flores e livros, confortos da tristeza”.
Exacto. Ler é a minha diversão, a minha distracção, meu consolo, meu pequeno suicídio. Quando não consigo suportar o mundo, enrosco-me a um livro, e é como se uma nave espacial me afastasse de tudo.
(…)
O livro que me fez querer ser escritora foi Martin Eden, de Jack London – e tem um suicídio no fim! (…) Comecei a ler quando tinha três anos. O primeiro romance que me comoveu foi Os Miseráveis – chorei, solucei, lamentei. Quando você é uma criança leitora, acaba lendo os livros que estão pela casa. Lá pelos treze anos, li Mann, Joyce, Eliot, Kafka, Gide – basicamente os europeus.
(…)
Tive sorte o bastante por ter um filho e ser casada quando ainda era muito jovem. Já fiz isso, agora não preciso fazer mais. Mas isso não é um exemplo. Escolhi não me casar mais, já tive um filho – então não vou sentir falta dessa grandiosa experiência que é ser mãe – e decidi ter uma vida autónoma, que é cheia de inseguranças, aborrecimentos, ansiedade, frustrações e envolve longos períodos de castidade. Achei que era isso que eu queria… mas isso não é um modelo, é apenas a minha própria solução, e só a justifico para mim mesma por causa dos meus projectos de vida.
(…)

Existe hoje uma pobreza de espírito tão desencorajadora em relação à alta arte moderna que não sinto vontade nenhuma de entrar na briga escrevendo um ensaio. No final dos anos sessenta tive a sensação de que a batalha estava vencida, mas foi uma vitória passageira. Quando ouço alguém me dizer que não gosta de Dostoiévski porque ele é caótico demais, digo “Espere aí!” Você poderia me dizer que o motivo disso é o facto de as pessoas estarem cansadas e precisarem descansar um pouco. Mas eu me pergunto: Por que elas deveriam descansar? [rindo]

Conversas no Cais de Sodré

- O Herberto Hélder salvou-me a vida.
- Mas literalmente?
- Literalmente, sem dúvida.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Graça Pina Morais (1929-1992)



Descobri uma grande escritora portuguesa, lastimosamente olvidada: Graça Pina Morais.

Li A Origem e pasmei perante a sua mestria na composição da densidade psicológica das personagens que habitam a Casa. Arquétipos de uma ruralidade ainda viva, todas tão humanas e propensas à fatalidade, todas tão amáveis apesar das suas fragilidades. A atmosfera e as personagens recordaram-me um pouco o realismo mágico de García Márquez. Mas só um pouco, pois ainda que apresentada de uma forma fantástica, o que prevalece nestas páginas é uma viagem ao centro da alma humana, naturalmente rica em sombras e declives.

Os comentários narrativos revelam uma inteligência emocional superior, embora por vezes mais descuidada do estilo, e o modo clarividente como Graça Pina Morais analisa e desmonta a dualidade do artista, na figura de João, só pode indicar que esta escritora viveu esplendorosamente toda a vida do espírito artístico.

Uma das características da Casa era a sua profusão de divisões inúteis. Tinha, pelo menos, umas quatro salas de estar, onde, aliás, ninguém estava: aquela era uma dessas. Compunham o mobiliário uma velha mobília de verga e uma cadeira de balanço, que constituía o encanto de todas as crianças que haviam crescido na Casa. Numa das paredes estava pendurado um grande espelho, com uma ingénua pintura num dos cantos, que representava uma série de patos nadando num lago azul berrante.

Quando Catarina entrou, João mirava-se no espelho, facto que lhe acontecia com frequência sempre que deparava com uma superfície espelhada, não porque se achasse particularmente bonito, mas porque gostava de se avaliar. Catarina parou e João lançou-lhe um olhar irritado, por ter sido surpreendido em intimidade consigo mesmo. Não disse uma palavra. Através da porta encostada, ouviam-se as vozes das tias de João, que chegavam até eles em surdina, vindas da sala de jantar.

– Estavas a ver os patos ou estavas a admirar-te? – perguntou Catinha.
– Estava a admirar-me, sem admiração, é claro! – respondeu ele, quase colérico.
– Não te aflijas, rapaz, és bonito.
– Não sou!
– És  – gritou convicta Catarina, que continuou, depois, numa voz baixa e misteriosa: – Torna a virar-te para o espelho, João.
– Que idiotice; para quê?
– Vais ver. Mas primeiro juras uma coisa: só te voltas para mim quando eu der ordem. Juras?
– Juro  – prometeu João, curioso. E virou-se para a superfície brilhante. Não havia mais nada além dos patos.

De repente, João abafou um grito de espanto. No espelho surgiu Catarina, despida; a rapariga segurava com os dois braços afastados as bandas do roupão aberto. Tinha os olhos baixos, quase fechados, a cabeça inclinada num movimento tímido e gracioso. O corpo de Catarina possuía a perfeição e a pureza da adolescência e havia nele uma espécie de espiritualidade comovente, que chegava a angustiar, por se sentir quanto era transitória. Apesar de despida, com a cara incendiada, a boca timidamente contraída, desprendia-se dela uma grande frescura, uma imensa pureza.

(…)

Deitado, João, à força de esperar o sono com impaciência, acabou por sentir-se muito doente. Todas as ideias se baralhavam na sua cabeça. Pensava vagamente em casar com Catarina, mas Catarina era só uma mulher, e para o cérebro excitado do rapaz, uma mulher era pouco. Queria todas as mulheres do mundo. Milhares de expressões de amor, de abandono, em rostos desconhecidos, corriam na sua imaginação, e todas tinham o juvenil corpo despido de Catarina. Caras sombrias, alegres, raivosas, rodeadas de cabeleiras fulvas e negras, encimavam o pescoço gracioso e inclinado sobre o ombro nu de Catarina, e assim, num crescendo de excitação raivosa e doentia, João acabou por possuir-se a si mesmo.

Ficou exausto, deitado de costas e coberto de suor. Não tinha a sensação de ser ele, nem sequer a consciência do próprio corpo, sentia-se transformado num monstro viscoso e sombrio, condenado à mais intransponível das solidões. Adormeceu mergulhado numa cinzenta e desolada tristeza.

Teve um sonho pavoroso. O mundo despovoara-se e não havia o mais pequeno vislumbre de vida sobre a Terra; João, desesperado e sozinho no grande universo, amava-se a si mesmo.

the pleasures of the damned *poems, 1951-1993



dark night poem

they say that
nothing is wasted:
either that
or
it all is.


liberated woman and liberated man

look there.
the one you considered killing yourself
for.
you saw her the other day
getting out of her car
in the Safeway parking lot.
she was wearing a torn green
dress and old dirty
boots
her face raw with living.
she saw you
so you walked over
and spoke and then
listened.
her hair did not glisten
her eyes and her conversation were
dull.
where was she?
where had she gone?
the one you were going to kill yourself
for?

the conversation finished
she walked into the store
and you looked at her automobile
and even that
which used to drive up and park
in front of your door
with such verve and in a spirit of
adventure
now looked
like a junkyard
joke.

you decided not to shop at
Safeway
you’ll drive 6 blocks
east and buy what you need
at Ralphs.

getting into your car
you are quite pleased that
you didn’t
kill yourself;
everything is delightful and
the air is clear.
your hands on the wheel,
you grin as you check for traffic in
the rearview mirror.

my man, you think,
you’ve saved yourself
for somebody else, but
who?

a slim young creature walks by
in a miniskirt and sandals
showing a marvelous leg.
she’s going in to shop at Safeway
too.

you turn off the engine and
follow her in.


advice for some young man in the year 2064 A.D.

let me speak as a friend
although the centuries hang
between us and neither you nor I
can see the moon.

be careful less the onion blind the eye
or the snake sting
or the beetle possess the house
or the lover your wife
or the government your child
or the wine your will
or the doctor your heart
or the butcher your belly
or the cat your chair
or the lawyer your ignorance of the law
or the law dressed as a uniformed man and killing you.

dismiss perfection as an ache of the
greedy
but do not give in to the mass modesty of
easy imperfection.
and remember
the belly of the whale is laden with

great men.


Charles Bukowski