sexta-feira, 25 de abril de 2014

Revolução



Troquei a turba do Carmo com os seus cravos nostálgicos pelo meu sofá vermelho, a companhia felina e um filme que enigmaticamente o meu computador começou a reproduzir, Rebel without a cause. Encontro-me sempre nestas noites de insónia branca, bolinando confortável pelo rumor manso da vida, rainha de uma solidão viva e pensante.

"E a liberdade? Que pergunta! Não vossa, a pergunta, mas minha. Que a minha liberdade sou eu, e custo-me a sustentar. Entretanto, chegam-me notícias de que é necessário sustentar a liberdade alheia. Mas que faz o alheio, que não faz pelo seu próprio sustento?" (Herberto Hélder).

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Corpo-a-corpo

Vai somatizar.
E somatiza:
A grande ruptura acontece nessa rua desgarrada em que o corpo caminha como quem marcha. Sem qualquer aviso prévio, a rugosidade de uma parede diz-lhe que está indefeso perante a morte e todos os trabalhos que a precedem. E assim, de súbito, o corpo perde afectos e deveres, rachado ao meio por um golpe de asa negra.
O seu primeiro impulso é procurar o nome da rua. Mas o medo infiltrou-se no sangue sem piedade. E a cabeça sempre foi frágil.
Há um crime imemorial que ainda não foi lavado e o teu corpo é chamado a depor. Todos têm de prestar contas. É por isso que todos os meses as mulheres sangram.
O corpo não possui mais um eixo ao abrigo da suspeita. Todos os seus movimentos toscos para recuperar o equilíbrio são vãos. A verticalidade tornou-se uma impossibilidade. A paisagem urbana surge desfigurada. Os edifícios são de papel cartonado e nunca te tinhas apercebido disso. Nos rostos que te cruzam não decifras mais qualquer vestígio da comunidade humana. A humanidade é uma ideia putrefacta que o teu olfacto ignorou nas décadas de aprendizagem. Venderam-te tantas ideias sem corpo e agora tudo vacila. Pareces um navio em alto-mar, fustigado pela tempestade.
Estás sozinho. Metes as mãos nos bolsos em busca de conforto – não esqueces jamais os hábitos que te impuseram aos membros. Mas tens os órgãos estilhaçados e a carne traumatizada pelo pensamento que te acidentou. Um vulto de plumas que assombra os bastidores da mente. Insinua-se e foge. Deixa um rasto de pássaros embalsamados.
O sabor a ferrugem na boca fendida. Roldanas de aço roendo os maxilares, numa pressão metálica que ameaça triturar o corpo a partir do queixo. Anos a confiar neste pedaço de carne e agora ele desconjunta-se e vai tudo abaixo.
Tudo abaixo. Os outros continuam de rosto empoleirado nos corpos. Não estão ameaçados pela disjunção. Talvez chorar, pedir ajuda… Oh, mas teriam que se usar as palavras e o horror alagou também a linguagem. Cerra antes os dentes e contraria a saliva. Não se quer enlouquecer e, no entanto, esta é a única certeza, o vazio que aparece de repente numa rua qualquer, abre a boca numa careta carnavalesca para te pregar um susto e zás! Foste engolido.
Estás sozinho, náufrago no real provisório. Estado de alerta máximo. Medo do real ser evacuado e não se ter para onde ir.
Porque não temos já para onde ir. Nem sequer se sabe o nome verdadeiro desta rua onde o real nos aconteceu. Sim, fugir. Mas para onde? Casa é a palavra mais vã que resta. Tanta arquitectura para não haver abrigo algum. O céu foi tomado de assalto pelos aviões e meteorologistas. O mundo é uma fantasia em extinção e as aves não migram mais. Morrem de mágoa, esfaceladas contra o asfalto.
Apanhas um táxi em desespero e agradeces numa oração silenciosa a oferta de transporte que a civilização oferece. Embora a casa também tenha sido contagiada. Navegas noite afora sobre o pensamento que te come a calma. Esses olhos não encontram mais descanso. O teu corpo não funciona. É um corpo-detrito, os nervos em franja, com uma consciência absurda das próprias mãos – vê nelas uma brancura que impõe a vigília.
Estado de alerta máximo.
Mesmo assim, não estás pronto para desistir da civilização. Por tão pouco, um mero ataque de nervos, dizes. Precisas só de recuperar a fé no real. Por isso vais ao médico.
Senhor doutor, queira ter a bondade de me dizer quantos comprimidos são necessários para matar o pensamento e recuperar o corpo?
Ao doutor dói-lhe a cabeça. Há dias em que não acredita na psicologia humana. Hoje é um deles. Está sem paciência e na sua frente tem um paciente. Depois de ouvir as palavras do corpo, não sabe o que dizer. Sente pela primeira vez a falta de um deus qualquer. Ao invés, opta por aconselhar alguma medicação. Ansiolíticos. Anti-depressivos. E hipnóticos em SOS, para o caso do real insistir nas suas visitas.
A mão escreve veloz uma receita, como quem acelera dali para fora. Para fora do contexto doutor-paciente onde ambos se atrasam num compasso sem esperança. Entrega a receita e num aperto de mão asséptico, diz 
As melhoras.
Como quem diz,
Até amanhã e esta guerra não fui eu que a criei.

Carta de uma desconhecida


Acabei por escolher um livro do Zweig para uma breve valsa nocturna. Apesar da edição vergonhosamente descuidada, deixou na alma uma tensão, como se uma outra alma a tivesse acabado de atravessar, "como se de repente uma porta se abrisse brusca e invisivelmente e uma corrente de ar frio brotasse de um outro mundo e invadisse o seu espaço de tranquilidade".

sábado, 12 de abril de 2014

Who will be my valentine?

A Montanha Mágica foi a minha leitura mais lenta: de meados de Janeiro até hoje. Agora que o encanto terminou, sinto borboletas no estômago: que livro da estante será o meu par para a próxima dança?

A Montanha Mágica


"Adeus, Hans Castorp, filho ingénuo e traquinas da vida! A tua história chegou ao fim. Terminámos a narrativa. Não foi uma história nem longa nem curta, apenas hermética.
(...)


Boa viagem! Agora é viver ou morrer! As perspectivas não são famosas: a dança macabra para a qual te arrastaram durará ainda alguns anos terríveis e não queremos apostar alto na tua sobrevivência. A dizer a verdade, deixamos, sem preocupações de maior, a questão em aberto. Certas aventuras da carne e do espírito, que sublimaram a tua ingenuidade, permitiram-te vencer na esfera do espírito aquilo a que provavelmente sucumbirás na esfera da carne. Momentos houve em que da morte e da luxúria carnal viste germinar, no teu reino premonitório, um sonho de amor. Será que deste festim universal da morte, deste ardor perverso e febril, que incendeia o céu chuvoso e crepuscular, poderá também um dia nascer o amor?”