sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O CHAMADO DA SEREIA



Ontem à noite mais uma insónia fervendo. Nestas noites de tempestade, das duas uma: ou me agarro ao álcool e atravesso a noite com bravura ou fico na cama abraçada a um livro e sobrevivo com ternura. Ontem, escolhi os livros. Trouxe para a cama Os Passos em Volta e Photomaton & Vox. E foi estranho e familiar ao mesmo tempo, como se tivesse saído para afogar a noite.

E depois a certa altura, ultrapassadas as cinco horas, enquanto lia,

«Mandaram-me fazer um electro-encefalograma para ver como ia o meu ritmo alfa. Eles tinham desconfianças, falavam de estados crepusculares. Divertido. Não havia estados crepusculares, o ritmo alfa ia bem. Cumprimentaram-me muito. «A sua cabeça está firme.» Porreiro, eu tinha uma cabeça firme. Era uma coisa alegre. Encontrei-me ainda algumas vezes com o psicanalista. Nessa altura ele interessava-se pelo Apocalipse (…). Foi um bom tempo. Mas eu tinha uma cabeça firme, um belo ritmo alfa. Então, com a minha firme cabeça, comecei a pensar na morte (…). Gosto da palavra suicídio. A frequência dos is como golpes, as duas sibilantes e a última consoante, malignamente dental, fascinam-me. Mas bastavam-me o prestígio da palavra e o jogo de coleccionar comprimidos mortais (…). Nada havia a fazer com as minhas metamorfoses interiores. Vagueava pelas ruas, entrava em todos os bares. Os bêbados formam uma maçonaria. (…). O costume. Comecei a estar farto. Enfim, uma pessoa não se embebeda somente para as miúdas perversões da memória, para a obliquidade de invenções avulsas, a trivialidade dos equívocos da emoção. Chateia-me ser um pequeno monstro sensível. «Merda», disse eu, «tenho uma cabeça firme. Não me vou deixar apanhar por tentações biográficas, a memória, os mitos que as culturas, marginais ou não, parecem querer que eu adopte. Não sou um símbolo da imaginação alheia.» «Bebe», respondeu o amigo. «Não bebo mais, estou farto, vou-me embora para um lugar onde ninguém me mexa nem eu me possa mexer muito, estou cansado de me mexer». Depois apareceram as pessoas que ajudam, que têm planos para a nossa glória. Comecei a ter medo. Então fiz a mala. «Merda, merda, merda», sibilava baixinho. Esta é realmente a minha embaraçosa chegada à maturidade. Não serve para espectáculo nem dá como exemplo ou símbolo. Tenho de inventar a minha vida verdadeira.»,

e uma vontade levantou-se dentro de mim, vontade de partir pelas marés, ver cidades, conhecer pessoas, beber muito, alimentar-me de trabalhos precários, ler muito, perder-me em ruas desconhecidas, gozar encontros improváveis e conversas ainda mais improváveis. Vontade de deixar tudo – um tudo que é muito pouco, resume-se apenas aos livros, à tese que tenho de escrever e alguns amigos – e partir pelo mundo afora, que esse sim deverá ser muito.
Tentei manter a calma, disse a mim própria, mais dois anos e vais, cumpres o dever e partes. Mas que fazer com toda esta urgência da viagem? Sinto-me definhar sem o impulso da aventura, andar por uma rua fria e abrir uma porta para um espaço de calor e fumo onde ninguém fala a minha língua, estranhar os rostos porque não são castanhos como os da minha gente. Que fazer?

E depois lembrei-me de um excerto do Moby Dick sobre o navio batido pela tempestade:

«O porto desejaria prestar-lhe socorro; o porto é piedoso; no porto, encontra-se a segurança, o conforto, o lar, a ceia, cobertores fortes, amigos e tudo o mais que provê às nossas necessidades. Mas, em plena tempestade, o porto e a terra representam o maior perigo para esse navio. É preciso evitar qualquer espécie de hospitalidade. Um toque no fundo, ainda que fosse uma simples carícia na quilha, seria o bastante para o quebrar em dois. Portanto larga todo o pano para se afastar da costa; e ao fazer tal, luta contra os próprios ventos que procuram impeli-lo para terra; procura de novo a solidão fustigada do mar; para se salvar lança-se deliberadamente no perigo; o seu único amigo de momento é o seu adversário de sempre.»

E conclui que o porto às vezes pode ser o perigo. Tudo o que é seguro é perigoso: somos educados neste axioma, adubados pela insegurança, mas há o dever, sempre o dever. Enfim, tenho medo. Medo de não partir. De ficar presa nos ventos fortes que porfiam em arrastar-nos na solidez que nos resta para «a costa traiçoeira e escrava». Até lá, fico à margem, evitando carícias na quilha.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A IRA É A COISA MAIS FEMININA QUE TRAGO EM MIM



«Um homem só precisa da força para sair de casa e comprar um prego e uma corda. É tudo o que precisa para se enforcar. Esta é a base de toda a esperança.»


«Tanto amor para morrermos tão sozinhos.»


Depois do fracasso do amor, já que ninguém me pode amar, já que não posso ser amada: PUTA OU MORTE!


«Jamais um homem superará em beleza uma mulher irada.»


Angelica Lidell, La Casa de la Fuerza

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A POESIA É VERTICAL






POETRY IS VERTICAL
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On a été trop horizontal, j'ai
envie d'étre vertical. -- Léon Paul Fargue.




In a world ruled by the hypnosis of positivism, we proclaim the autonomy of the poetic vision, the hegemony of the inner life over the outer life.

We reject the postulate that the creative personality is a mere factor in the pragmatic conception of progress, and that its function is the delineation of a vitalistic world.

We are against the renewal of the classical ideal, because it inevitably leads to a decorative reactionary conformity to a factitious sense of harmony, to the sterilisation of the living imagination.

We believe that the orphic forces should be guarded from deterioration, no matter what social system ultimately is triumphant.

Esthetic will is not the first law. It is in the immediacy of the ecstatic revelation, in the a-logical movement of the psyche, in the organic rhythm of the vision that the creative art occurs.

The reality of depth can be conquered by a voluntary mediumistic conjuration, by a stupor which proceeds from the irrational to a world beyond a world.

The transcendental 'I' with its multiple stratifications reaching back millions of years is related to the entire history of mankind, past and present, and is brought to the surface with the hallucinatory irruption of images in the dream, the daydream, the mystic-gnostic trance, and even the psychiatric condition.

The final disintegration of the 'I' in the creative act is made possible by the use of a language which is a mantic instrument, and which does not hesitate to adopt a revolutionary attitude toward word and syntax, going even so far as to invent a hermetic language, if necessary.

Poetry builds a nexus between the 'I' and the 'you' by leading the emotions of the sunken, telluric depths upward toward the illumination of a collective reality and a totalistic universe.

The synthesis of a true collectivism is made possible by a community of spirits who aim at the construction of a new mythological reality.



Hans Arp, Samuel Beckett,
Carl Einstein, Eugene Jolas,
Thomas McGreevy, Georges
Pelorson, Theo Rutra, James
J. Sweeney, Ronald Symond

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

CARTA DE AMOR AO CAIS DE SODRÉ



O mar estava bravo e os barcos não andavam. Aportados no cais, pareciam botas desoladas sem pés que as levassem. Os marinheiros debandavam como aves eufóricas de negras asas, em busca de carne que os alimentasse nos dias de encalho.
Durante anos encontraram-se de quando em quando nos bares que asfaltavam o cais. Ela sempre vestida de homem e com um sorriso cru de taberna. Ele mais discreto na sua crueldade, mas com o mesmo vazio alojado nas entranhas. Olhavam-se brevemente nas noites em que se cruzavam. Tinham olhos escuros marejados de desgostos. Conheciam-se de nome pelas lendas de mares travessos que haviam cruzado. Nunca tinham partilhado navio ou travessia, mas sabiam que tinham galopado as mesmas tempestades marinhas, ainda que em águas opostas. Tinham cavalgado as mesmas ondas de inquietação, sido arrastados por marés de esperança inférteis e dedicado os seus melhores anos ao apelo dos mares desconhecidos.
Os outros marinheiros não ousavam referir um nome de um ao outro. Sabiam que havia rivalidade pelas lendas que os precediam e não queriam apoquentar nenhum dos dois. Uns diziam que se tratava de orgulho, outros de medo. E era um pouco dos dois. Raramente dois seres idênticos em força e dor se encontram no mesmo cais. Parados e obrigados à sofreguidão dos dias em terra. Eles eram inimigos e conheciam a força da dor do outro sem os acessórios da palavra. Adivinhavam-se pelo cheiro. Sentiam-se ameaçados.
Partilhavam a mesma maldição: a noite. A noite, essa feiticeira que despe os rostos da identidade e lhes estampa desespero e solidão, eram o porto de ambos. E aí se encontraram durante anos. Suspeitavam um do outro porque conheciam a noite como amantes. E temiam apenas uma coisa: as aflições diurnas. Por isso, mantinham-se nocturnos com obstinação e não deixavam cair a máscara que lhes amarelecia o sorriso e turvava o pensamento.
Um dia as coisas mudaram. Ventos travessos obrigaram os barcos a atracarem por mais tempo que o desejado. O tempo é o maior inimigo dos marinheiros, derrota-os na sua impaciência e arrasta-os para o turbilhão do vício. Ele e ela aportaram no cais vindo de mares contrários – ela do Mar Vermelho, ele do Mar Morto. Traziam os corpos fustigados por tormentas de meses e chegaram quase despidos de desejo. Ambos tinham perdido mais de metade das suas tripulações em caprichos aquáticos e o sangue fervia-lhes nas veias com ardor etílico.
Ela, como mulher, foi a primeira a julgar da necessidade de tréguas: uma aliança era precisa para que o seu barco pudesse navegar novamente. Ou talvez fosse um erro de julgamento, coisa comum nas mulheres, que se deixam arrastar facilmente pelas águas da fantasia. De qualquer dos modos, ela não gastou muito tempo antes de se dirigir a ele, propondo aliança rápida. Trazia nos ossos cansaço e as vértebras corroídas pela desilusão e já não conseguia pensar direito. Precisava de um companheiro com quem partilhar responsabilidades e decisões sobre ventos, marés, mapas e astrolábios. Falou-lhe com as palavras que os homens usam em terra, os sons mais traiçoeiros para as gentes do mar.
Ele ouviu mas manteve-se silencioso e ofensivo, não desvendando nenhuma solução para os barcos atracados. Recusou a aliança. Arrogante e forte. Ela, ofendida, subiu arfante as ruelas até à pensão onde pernoitava. Lançou então aos quatro ventos, que ambos conheciam tão profundamente, um grito de guerra. Que também podia ter sido um grito de amor, não fosse a probabilidade do desencontro tão grande.
Era uma pensão de prostitutas, único local onde uma mulher marinheira se podia albergar e descansar, embora ela conservasse a sua adaga debaixo da almofada. A pensão, que tanto amara no passado, pelo desespero que gritava nas suas paredes, pareceu-lhe acabada. As prostitutas pareciam collants depositadas nos sofás da memória, entediadas na espera dos clientes que não mais regressavam. É o fim de uma época: pensou. Tudo acaba e ainda bem que assim é, para que algo de novo possa começar: tranquilizou-se.
No quarto abafado, despiu as roupas salgadas que trazia e vestiu-se de mulher. Roupas antigas que há muito não envergava: um corpete de veludo vermelho escuro e uma saia coçada rodada como um carrossel. Umas botinas negras de verniz que lhe apertavam os pés. Pintou os lábios de vermelho vivo e empoeirou as faces de rouge. Antes de fechar a porta, viu o seu reflexo breve no espelho e soube-se ridícula. Mas era preciso declarar guerra àquele marinheiro insolente que ousara ofendê-la numa recusa obstinada de farol em noite de nevoeiro. Pensou: com modos de mulher será mais fácil atraí-lo para a minha armadilha.
Galopou com os pés sufocados nas botinas estreitas por tabernas e casas nocturnas até o encontrar num prostíbulo a um canto acanhado. Acompanhado por várias mulheres, todas com modos de menina, modos que ela escolhera desaprender, ele olhou-a com o desprezo do adversário de um duelo, que zomba das armas escolhidas pelo ofendido.
Ela tornou a trepar as ruelas que levavam até à pensão, arrastando com fúria o seu corpo de réptil. Fincava os passos nas calçadas negras com toda a força que dispunha mas sentia-se fraca. Derrotada na sua esperança. Compreendia agora que fora ofendida, gravemente ofendida, não por aquele marinheiro bravo com o olhar frio da faca, mas pelos anos. Derrotada pela mulher que não soubera ser todos esses anos.
No quarto, livrou-se apressadamente das roupas antiquadas. Chorou. Era uma mulher ridícula. Fugira disso durante anos como o diabo foge da cruz. Mas não conseguira escapar e chorava agora um choro de raiva, de menina mimada estragada pelo desgosto, de mulher humilhada pela esperança. Pela fome de amor que nunca se saciara.
Embarcara por despeito. Por não querer ser mulher. Ainda adolescente. Tinha um corpo muito frágil e um coração de vidro. Pensou: a vida no mar fará de mim um ser rijo e não torno a sofrer. Divertira-se muito nos primeiros anos. Conhecera muitas cidades longínquas, velejara pelos mares com sortes de principiante. Vivera várias histórias de amores loucos e passageiros em cada porto, bebendo e fumando as noites com toda a avidez do seu corpo jovem.
Regressara sempre ao navio com a certeza da viagem. A última viagem, porém, tinha sido muito morosa e quase perdera a vida nela. No convés, os ventos violentos quase tinham quebrado a sua espinha. Metade dos seus morreram nessa noite de tormenta, os seus corpos sacudidos pelas bordas do navio. Quando alcançou o porto, pensou que não merecia a vida que lhe tinha sobrevivido. Passou cabisbaixa pelos bares e trepou as vielas até à pensão reles. No quarto sem janela, tomou banho. Era preciso expulsar o sal daquele corpo.
Esfregou a pele com um esfregão de aço, numa febre de inocência. Queria acreditar mas já não sabia como. Queria abandonar adagas e cutelos mas a frieza do metal tinha-se alojado nos seus gestos. Queria continuar guerreira mas também queria descansar e submeter-se. Queria ser mulher mas tinha perdido o caminho de volta para a doçura feminina e materna. Estava perdida.
Olhou a sua imagem nua no espelho e usou o olhar frio que tantas vezes usara para manejar cabos apertados ou avaliar presas masculinas. Estava diferente. Olhou-se demoradamente com o olhar inquisidor do detective que procura a pista que denuncia o invasor ou criminoso. Que mudara em si? O seu corpo avolumara-se com as viagens, adquirira uma rudeza que lhe agradava porque afastara a fragilidade da infância. Mas não era isso. Seriam as rugas, traços de intensidade que sulcavam o rosto como ondas? Não, também não.
Extenuada pela busca, adormeceu em frente ao espelho, nua no seu desamparo. Caiu embalada pela vertigem de um sono sem sonhos. Quando acordou, olhou-se novamente e soube o que era. Eram os seus olhos. Estavam baços, embaciados com o fundo dos mares. Tinham perdido o brilho da juventude. Estou velha: pensou. Mais velha do que a idade que trago escrita nas mãos. O tempo, o tempo enganou-me. Não trouxe a paz que eu ansiava. E continuo a ter um coração de vidro.
Depois desse dia, nunca mais ninguém viu essa mulher marinheira que velejara oceanos amargos e saqueara bares e homens com o seu sorriso lendário de pirata. Diz a lenda que se tornou fiscal dos caminhos-de-ferro, trocando as noites pelos dias e o mar pela terra. E que usou até ao fim dos seus dias um fato cinzento e impessoal que combinava na perfeição com os seus olhos.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

MULHER






«O QUE É UMA MULHER?


É UM VACA SENTADA EM CIMA DE UM SORRISO AMARROTADO»




DJUNA BARNES

UMA NOITE ENTRE OS CAVALOS



Encontrei mais um livro para endurecer o meu coração com a Beleza: Uma Noite entre os Cavalos de Djuna Barnes.


«- A vida – disse ela – é porca; e assustadora também. Há nela de tudo: crime, sofrimento, beleza, doença… morte. Sabias?
A miúda respondeu: - Sabia.
- E como é que sabes?
A miúda voltou a responder: - Não sei.
- Como vês – continuou Madame von Bartmann – não sabes nada! Tens de aprender tudo, e depois começar. Tens de ter uma grande compreensão, ou darás uma queda. Os cavalos tiram-te rapidamente do perigo; os comboios fazem-te voltar a ele. As pinturas dão um choque mortal ao coração… ficam penduradas por cima de um homem de quem gostaste e talvez tenha sido assassinado na cama. As flores fazem do coração um túmulo porque há dentro delas uma criança sepultada. A música incita ao terror da repetição. Os cruzamentos das estradas são os votos dos amantes; e as tabernas para os ladrões. A contemplação leva ao preconceito; e as camas são campos onde os bebés travam uma batalha perdida. Sabias tudo isto?
Nenhuma resposta chegou do escuro.
- O homem apodrece logo à partida - continuou Madame von Bartmann. – Apodrecido de virtude e vício. Ambos o filam pela garganta e o reduzem a nada; e Deus é a luz que o insecto mortal acende para uso próprio e com ela morrer. Isto é muito sensato, mas não deve equivocar-nos. Não quero que olhes do alto para uma puta qualquer de uma rua qualquer; reza, cai na lama, e desiste, mas sem preconceitos. Um assassino pode ter menos preconceitos do que um santo; mas às vezes mais vale ser santo. Não sintas orgulho com a tua indiferença, se caíres nas garras da indiferença; e não te enganes – disse ela – sobre o valor das tuas paixões; não passam do condimento de todo este horror. Gostaria... – Não terminou o que ia dizer mas tirou calmamente o lenço de bolso e enxugou os olhos em silêncio.
- De quê? – A voz da miúda saía das trevas.
Madame von Bartmann tremia. – Estás a pensar? – perguntou.
- Não – respondeu a miúda.
- Então pensa – disse Madame von Bartmann com uma voz forte, voltando-se para ela. – Pensa em tudo, o bom, o mau, o indiferente; em tudo, e faz tudo, tudo! Antes de morrer, tenta saber o que és. E – disse ela, inclinando a cabeça para trás e engolindo em seco, com os olhos fechados – quando fores uma boa mulher vem ter comigo.»


Irei, Madame von Bartmann.