domingo, 23 de janeiro de 2011

SILÊNCIO PARA 4



«(…)
- Eu não posso viver sem amor.
- Nem nos intervalos?
- Sei lá.
- Precisas de ocupar o tempo livre. Tens de dar pousio ao amor, de te esqueceres que o amor é coisa existente, tens de dar intervalo, precisas de ternura, precisas, eu percebo, é errado ir em busca dessa ternura, ela aparece, não te suicides com o primeiro que aparece, é mal que vem contra ti, dá tempo ao amor, é a tua ânsia de precipício, de cair sempre para a frente, sem ver o que vai nos lados.
- Sou assim.
- É uma resposta extremamente conformista. É uma resposta.
- É.
- Quero o teu bem, espera, alguém aparece no momento mais imprevisível, pessoa que muda o sentido às coisas, espera, não arrastes a carcaça para a fenda do mistério, arrastas também um eu, um outro eu que pode estar inocente, nem sequer percebe o que vai acontecendo contigo, não quero dizer alma. Hem. É diferente.
- Preciso de ternura, cada um sabe daquilo de que tem necessidade.
- Evidente, há uma teimosia que não está de acordo com a tua inteligência, o carro à frente dos bois. Calma, minha filha, o mundo tem uma ordem no caos.»

A HISTÓRIA DE UM SONHO



« (…) Consegui ver que te erguiam uma cruz, não naquele pátio por baixo, mas no ilimitado prado florido, onde me encontrava reclinada nos braços do meu amante, com todos os outros casais. Conseguia divisar-te vagueando só e sem guarda por vielas antigas, contudo, sabia que o teu caminho estava traçado e não havia fuga possível. Caminhavas agora através do atalho da floresta. Eu aguardava-te expectante, mas sem especial simpatia. O teu corpo estava coberto de vergões, mas já não sangrava. À medida que subias, o atalho alargava-se e a floresta recuava de ambos os lados. Encontravas-te agora ao fundo, no prado, a uma distância inacreditavelmente grande. No entanto, saudaste-me com um olhar sorridente, parecendo quereres dizer-me que havias satisfeito os meus desejos e que trazias tudo o que precisava: roupa, sapatos, jóias. Mas eu considerei a tua conduta extremamente grotesca e absurda e senti-me tentada a rir na tua cara com desdém – tudo porque, por fidelidade a mim, havias recusado desposar a princesa, suportado torturas, e agora cambaleavas até aqui para sofreres uma morte atroz. Corri para ti e também apressaste o passo – comecei a levitar e tu flutuavas no ar. Mas, de súbito, perdemo-nos um do outro e dei-me conta que nos cruzáramos sem nos encontrarmos. Então, desejei que ao menos ouvisses as minhas risadas enquanto te pregavam na cruz. Desatei a rir tão alto e tão estridentemente quanto podia. Era esse o riso, Fridolin, que soltava quando acordei.»

O MAR, O AMOR



Duras afirmou uma vez que, se não houvesse o amor e o mar, não haveria romances. É isso que temos em Olhos Azuis, Cabelos Negros: o mar, um casal, silêncio e desespero.


«Foi na estrada nacional de madrugada depois do segundo café ter fechado que ele disse que procurava uma mulher jovem para dormir perto dele durante algum tempo, porque tinha medo da loucura. Disse que queria pagar a essa mulher, era essa a sua ideia, que era preciso pagar às mulheres para elas impedirem os homens de morrer, de enlouquecer. Tinha chorado mais, tão completamente extenuado de cansaço como estava. O Verão metia-lhe medo.»


O homem nunca fez amor com uma mulher: repugna-lhe a «coisa interior».
«Ela diz: Essa dificuldade que sente, sempre esteve aqui na minha vida, inscrita no mais profundo do meu prazer com os outros homens.
Ele pergunta-lhe de que fala ela. Ela fala dessa impossibilidade, dessa repugnância que ela lhe inspira. Diz-lhe que partilha com ele essa repugnância que sente por si própria. E depois diz que não, não é a repugnância. A repugnância é inventada.»
«Ela olha à sua volta no quarto, põe-se a chorar. Por causa daquele amor, diz ela. Pára outra vez. Diz que é terrível viver como eles vivem (…) Que a viver como eles vivem, mais vale morrer. Volta a parar em frente dele, olha-o, chora, repete: Por causa deste amor que se apoderou de tudo e que é impossível.
Ela pára. Ele ouviu-a. Não se ri. Pergunta:
- Está a falar de quê?
Ela sente-se confusa, diz:
- Falei sem pensar, estou muito cansada.
Diz: Nunca me coloquei essa questão.
Ele voltou a levantar-se. Ergue-a encostado a ele. Beija-lhe a boca. O desejo, naquela derrota, fá-los tremer aos dois.
Separam-se. Ele diz:
- Eu não sabia a este ponto.
(…)
O beijo transformou-se no prazer. Ocorreu. Dominou a morte, o horror da ideia. Não veio depois nenhum outro beijo. Ocupa o desejo inteiro, é, por si só, o seu deserto e a sua imensidade, o seu espírito e o seu corpo.»


Um odor salgado perpassa a totalidade do romance. O som das vagas acompanha uma frase que soa, recua e se repete:

« - Talvez o amor possa viver-se assim de uma maneira horrível.»

MULHERES - CHARLES BUKOWSKI



«A arte é o meu medo. É dele que eu a extraio.»


«Eu era sentimental em muitas coisas: a uns sapatos de mulher sob a cama; a um gancho abandonado sobre a cómoda; ao modo de dizer «vou fazer chichi..»; fitas de cabelo; descer a avenida com elas à uma e meia da tarde, apenas duas pessoas a caminhar; as longas noites em que se bebe, se fuma e se conversa; as discussões; pensar no suicídio; comermos juntos e sentirmo-nos bem; as brincadeiras e os risos absurdos; sentir milagres no ar; estarmos juntos dentro de um carro estacionado; comparar antigos amores às três da manhã; dizerem-nos que ressonamos, ouvir o ressonar dela; mães, filhas, filhos, gatos, cães; por vezes a morte, por vezes o divórcio, mas continuar sempre; ler o jornal sozinho num quiosque e sentir náuseas por ela estar casada com um dentista com um Q.I. de 95; corridas de cavalos, os parques, ou piqueniques no parque; até cadeias; os sinistros amigos dela, os nossos amigos sinistros; os nossos copos e as danças dela; os teus engates; os engates dela; os comprimidos dela, as tuas fodas por fora e as dela; dormir juntos…» (pag. 227/228).


«Mulheres: gostava da cor das suas roupas; do modo como andavam; a crueldade de alguns rostos; de quando em quando, a beleza quase perfeita dum rosto, encantadoramente feminino. Elas tinham uma vantagem sobre nós: planeavam muito melhor a sua vida, eram muito mais organizadas. Enquanto os homens viam os jogos de futebol, bebiam uma cerveja ou jogavam bowling, elas, as mulheres, pensavam em nós, concentravam-se, perscrutavam, decidiam – aceitar-nos, rejeitar-nos, mudar-nos, matar-nos ou simplesmente viverem connosco. No fim de contas, isto tinha pouca importância; não interessava o que elas faziam, nós acabávamos na solidão e na loucura.» (pag. 241/242).

TRINTA ANOS - INGEBORG BACHMANN



Um homem entra na casa dos trinta. Um Junho chuvoso. «Lança a rede-recordação, lança-a sobre si próprio e apanha-se a si mesmo, captor e presa simultaneamente, sobre o limiar do tempo, o limiar do espaço, para ver quem ele foi e em quem ele se tornou.» Até aqui viveu sem mal, sem definição. Sem reflexão, sem medo. «Agora sabe que também ele caiu na armadilha.»


Junho: Calor. O desassossego apodera-se dele. Tem de partir, deixar o seu passado. Tem de ser livre e abandonar tudo. Vai para Roma, separar-se das pessoas e não se juntar a outros. Já não pode viver entre os homens. «Quando se permanece durante bastante tempo num local, acaba-se por tomar muitas formas, por deixar-se ir pelo que se diz e tem-se cada vez menos direito à sua própria pessoa. Por isso ele quer, a partir de agora e para sempre, mostrar-se sob a sua própria forma.»
Em Roma, não consegue libertar-se, começar tudo de novo. Este ano começa mal. A traição do amigo. O reencontro com um amor antigo e percebe que a cólera dela na altura da separação foi fingida, que ele se sentiu culpado porque ela o tinha simplesmente deixado acreditar nisso. «Baixinho e energicamente, ele expele a culpa como o ar que expira, e pensa: fui mal aconselhado no meu desespero. Mas estou a ser ainda mais mal aconselhado pela minha lucidez. Tenho frio. Preferia ter conservado a minha culpabilidade.
A destruição está em marcha. Poderei vir a falar em felicidade, se este ano não me matar.»


Agosto: a coação para agir rapidamente, para viver depressa. Ama um bilião de mulheres, todas ao mesmo tempo, sem as diferenciar.

Setembro: «Quem sou eu, então, neste Setembro dourado, se de mim arrancar tudo o que de mim fizeram?
(…)
Se eu não tivesse mergulhado nos livros, em histórias e lendas, nos jornais, em notícias, se tudo o que é comunicável não tivesse crescido dentro de mim, eu seria um nada, uma junção de acontecimentos incompreendidos.
(…)
Não mereço o facto de ver, de ouvir, mas os meus sentimentos, esses mereço-os verdadeiramente, essas garças por sobre brancas praias, esses viajantes da noite, vagabundos famintos que levam o meu coração para a estrada.»


Ser-se humano: saber guardar as distâncias. Sono. A cabeça nas almofadas. O Outono das últimas rosas: o tempo já não lhe parece precioso, utilizável. Gastas as noites em paixões efémeras. Há avareza de luz, mesmo os dias claros se vestem de cinzento. Ganha hábitos e vê com agrado esse seu processo de petrificação. Deixa de ver os amigos. Desliga o telefone. Sente-se bem sozinho e torna-se mais simples de dia para dia.

O Inverno: gelado e húmido. No momento em que se sentia tranquilo e feliz, depois de ter passado por todas as experiências possíveis e imaginárias, chega o amor inacreditável. Deixa de ser senhor de si próprio e a sua carne arrasta-o para o inferno. O amor torna-se a vingança sobre tudo o que há de suportável sobre a terra. Porque o amor é insuportável.
«Amava. Estava liberto de tudo, de toda a individualidade, pensamento ou objectivo, naquela catástrofe em que não existia o bem nem o mal, a justiça ou a injustiça, e estava certo de que não havia nenhuma saída digna desse nome para aquela situação.»
Faz as malas pois compreende que mesmo a primeira hora daquele amor foi excessivamente. Gasta as últimas forças nessa fuga.
Mas não vai longe. Tudo se desmorona com a partida. Fica sem dinheiro. Dorme ao relento. Sente que o fim se aproxima. Pela primeira vez quase escreve a verdade e pede dinheiro ao seu pai. Sente-se mal porque tem quase trinta anos e sempre se desenvencilhou sozinho. O dinheiro chega rápido. Volta para Viena – mas sem ousar pronunciar «para casa». reencontra amigos: para trás, ou ainda mato alguém! Mantenham as distâncias!


Torna a fazer as malas à pressa. No comboio, um companheiro de viagem fala sobre quantos por cento de loucos se tomam por Napoleão, quantos pelo último Kaiser, por Lindberg, Hitler ou Ghandi. Isto desperta-lhe um certo interesse e pergunta então se uma pessoa se poderia tomar por si própria sem danos de maior e se isso não seria também uma forma de loucura.
Pensa em desaparecer sem deixar rasto. Ou ir-se embora com ela, cujo nome ele nunca ousa pronunciar. Mas não consegue chegar a nenhuma conclusão.
«Quer fazer frente e não quer fazer frente. Tende a compreender a fraqueza, o erro, a estupidez, e quer combatê-los, denunciá-los na praça pública. Tolera e não tolera. Odeia e não odeia. Não consegue tolerar e não consegue odiar.
Também é um bom motivo para se desaparecer.»


Entretanto, chega a Primavera. Decide submeter-se. Aceita um trabalho. Antes, decide fazer uma viagem sem pressas. Em Génova, apanha uma boleia para Milão, com um homem da sua idade que acelera muito. Diz que tem de chegar ao centro antes da meia-noite. Ao lado do condutor, sente-se mais sossegado e com uma estranha sensação de bem-estar, mas gostaria de dizer alguma coisa e de sentir poisados nele os olhos claros do condutor. Quer perguntar-lhe se aquele ano iria ser difícil também para ele e o que se havia de fazer, o que se havia de pensar daquilo tudo. «Começou a imaginar este diálogo com o homem, enquanto eram levados através da noite, grande noite em que todas as coisas pareciam grandes e estranhas, como dois meninos ajuizados sentados no banco da frente, juntos para ouvirem uma lição. À frente deles surgiu um camião, aproximaram-se dele rapidamente, desviaram-se para o ultrapassar mas, quando estavam lado a lado, o camião desviou-se também na mesma direcção para se meter por um atalho. Voaram pelo ar alguns metros e foram contra um muro.»


Aquele ano quebrou-lhe os ossos. Está deitado na clínica e não conta os dias que faltam até lhe ser tirada a couraça de gesso debaixo da qual promete curar-se. O desconhecido teve morte imediata.
Maio já chegou. Todos os dias as flores do seu quarto são substituídas por flores frescas e mais coloridas. «Já não duvida da sua juventude. Sentira-se um velho de cem anos, sim, mas quando era muito mais novo, quando os seus pensamentos e o corpo o inquietavam demasiado.
Muito jovem, desejara uma morte precoce, não quisera chegar a fazer trinta anos. Mas agora desejava a vida. Outrora, só lhe tinham balançado na cabeça os sinais de pontuação para aquele mundo, mas agora vinham-lhe à mente as primeiras frases com que ele lhe surgia. Outrora, tinha achado que podia pensar tudo até ao fim, e não tinha reparado sequer que dava apenas os primeiros passos numa realidade que não se deixava pensar até ao fim com essa facilidade, e que muito ainda lhe ocultava. Durante muito tempo não soubera já no que acreditar, se é que não pensava mesmo ser uma vergonha acreditar nalguma coisa. Agora começava a acreditar em si próprio, quando fazia alguma coisa ou se expressava. Começa a ter confiança em si mesmo. Confia também nas coisas que não precisam de uma prova, nos poros da sua pele, no sabor salgado do mar, no ar cheirando a frutos, e em tudo o que tem algo de
particular.»


Antes de sair da clínica, ao pentear-se em frente a um espelho, descobre um cabelo branco.
Está vivo. Em breve estará curado. Em breve completará 30 anos.

«Digo-te: levanta-te e caminha! Não tens nenhum osso partido.»

ORLANDO



Um exercício incrível de imaginação que nos maravilha e inquieta a cada instante: «como é possível que esta história tenha sido imaginado por uma mente, uma mente apenas?».


Concluímos no final da leitura, algo extenuadas pelo ritmo eufórico e diálogo irónico permanente que, embora o livro tenha sido escrito por uma pessoa apenas, essa pessoa era habitada por várias. Uma pessoa, afinal, como as outras, mas com um ouvido extremamente amplificado para sintonizar a multiplicidade de vozes que constitui um Eu.


A desgraça final da autora terá vindo daí, dessa antena apuradíssima que lhe permitia amplificar cada voz, até à loucura. A beleza das suas obras também: veio desse esforço sobre-humano para domar as vozes e integrá-las numa voz, evitando constantemente o colapso. Colocar em palco, no papel, todas as personagens que nos fazem e desfazem.


E é isto que Orlando é, muitas coisas: uma biografia, uma ficção histórica, exorcismo de demónios, crítica feminista, testamento de uma ambição, uma obra desumana e genial e, ainda «a maior carta de amor da literatura», como um crítico feliz disse. De Virginia para Vita. Mas sobretudo, de Virginia para Virginia.


“«O quê, então? Quem?», dizia. «Trinta e seis anos; ao volante de um automóvel; mulher. Sim, mas também um milhão de outras coisas mais. Uma snobe – será que o sou? A jarreteira, no salão? Os leopardos? Os meus antepassados? Se tenho orgulho neles? Tenho, pois! Ávida, sensual, viciosa? Serei mesmo? (aqui entrou em cena um novo eu). Não me importo nada de o ser. Honesta? Julgo que sim. Generosa? Ora isso não conta (aqui entrou em cena um novo eu). Deitada na cama a manhã inteira, entre belos lençóis de linho, a ouvir os pombos; baixela de prata; vinho; criadas; lacaios. Mimada? Talvez. Demasiadas coisas que não servem para nada. Daí os meus livros (aqui citou cinquenta títulos clássicos; aludindo, julgamos nós, às românticas obras de juventude que destruíra). Fluente, desenvolta, romântica. Mas (aqui entrou em cena um novo eu) também uma inepta, uma trapalhona. Mais desastrada que eu não há. E … e … (aqui hesitou, procurando uma palavra, e ao sugerir «Amor» talvez nos enganemos, mas o certo é que ela riu, corou e exclamou depois…) Um sapo cravejado de esmeraldas! O Arquiduque Harry! Varejeiras no tecto! (aqui entrou em cena um novo eu). Então e Nell, Kit, Sasha? (mergulhou nas mais profunda tristeza: algumas lágrimas chegaram mesmo a tomar forma, e havia muito que ela deixara de chorar). Árvores, disse ela. (Aqui entrou em cena um novo eu.) Adoro árvores (ia a passar por um maciço delas), ali a crescer há mais de mil anos. E estábulos (passou por um estábulo em ruínas, à beira da estrada). E cães-pastores (lá vinha um a atravessar a estrada. Orlando desviou-se cautelosamente. E a noite. Mas as pessoas… (aqui entrou em cena um novo eu). As pessoas? (repetiu, sob a forma de uma pergunta.) Não sei. Tagarelas, invejosas, sempre a dizerem mentiras.
(…)
«Assombrada!», exclamou, carregando bruscamente no acelerador. «Assombrada, sim, desde criança. Lá vai o ganso selvagem. Passa diante da janela, voa em direcção ao mar. E eu corri (agarrou-se com mais força ao volante), estiquei-me para o agarrar. Mas o ganso voa demasiado depressa. Tornei a vê-lo, aqui – além – acolá -, Inglaterra, Pérsia, Itália. Sempre a voar muito depressa, em direcção ao mar, e eu sempre a persegui-lo com palavras como redes (aqui estendeu a mão para fora da janela) que mirram como vi mirrarem as redes içadas para o convés, trazendo dentro apenas algas; e às vezes vem um pedacinho de prata – meia dúzia de palavras – no fundo da rede. Mas nunca o grande peixe que mora nas florestas de coral.» Aqui, inclinou a cabeça, em profunda meditação.
E foi nesse instante, em que parara de chamar «Orlando» e estava absorta a pensar noutra coisa, que a Orlando por quem chamara veio de livre vontade; como se prova pela mudança que agora se operava nela (acabava de entrar no parque, transpondo o portão de entrada).
(…)
Estava agora, portanto, obscura e sossegada, tendo-se tornado, com a adição desta Orlando, aquilo a que com razão ou sem ela se chama um eu único, um verdadeiro eu. E calou-se. Porque é provável que quando uma pessoa fala em voz alta, os eus (que podem ser mais de dois mil) se apercebam da discórdia, e tentem comunicar, mas quando a comunicação se estabelece, calam-se.”


A mim também os meus eus me chegam através de vozes conflituosas e, uma vez, poderia julgar que os vi a todos dentro de um carro. Foi numa manhã de ressaca, uma das manhãs mais doces que tive, e estava na casa de uma amiga que entendia o meu coração e a minha cabeça sem se afligir. Estávamos as duas de maquilhagem borrada, os corpos estendidos na cama dela como detritos e sorríamos de todas as nossas histórias até aquele encontro breve. De dois dias apenas. Em New York.

Bebíamos água com sumo de limão de um púcaro enorme e era a água mais saciante de sempre, quando ela me disse, com o sotaque austríaco dela que eu era no mínimo três pessoas. A conduzir um carro.

- «Vais a conduzir e vais relaxada, a ouvir música, a fumar, a rir e a conversar com o outro eu que vai sentado no lugar do morto. De repente, há algo que te perturba e ficas destruída, incapaz de continuar a conduzir o carro. E de imediato, numa acrobacia, sem parar o carro, o outro eu que está ao lado, toma o controlo do volante e começa a conduzir de forma agressiva, dizendo blasfémias à janela. Um eu niilista que quer que tudo se lixe. No banco detrás, há outro eu que fica em pânico com essa acrobacia de condutores, que tem medo que o carro se descontrole. E o mais natural seria que encostasses o carro para que os condutores pudessem trocar sem perigo.»

- «Talvez. Mas o carro não pode parar. Tem de continuar.»


- «É esse o problema. Não consegues admitir que a paragem. És conduzida por um carro».


Em silêncio, enrosquei-me em mim com um sorriso frágil e puxei o cobertor para mim.


- «Vês, agora que te disse isto, ficaste quieta e triste. É verdade. O teu eu mais verdadeiro é esse. O do banco de trás»


- «Não. Fiquei a pensar. Não fiquei triste. Acho bonito. Belo de certa forma.»


- «Há outro eu, então. Um que vai aninhado junto à janela, no banco detrás, indiferente às acrobacias do carro e dos condutores. Vai a olhar a paisagem e a escrever secretamente poemas na sua mente. Esse é o teu eu menos contaminado.»

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

THE BOOK OF REPULSIVE WOMEN (ii)



From Third Avenue On


And now she walks on out turned feet

Beside the litter in the street

Or rolls beneath a dirty sheet

Within the town.

She does not stir to doff her dress,

She does not kneel low to confess,

A little conscience, no distress

And settled down.

Ah God! she settles down we say;

It means her powers slip away

It means she draws back.

day by day

From good or bad.

And so she looks upon the floor

Or listens at an open door

Or lies her down, upturned to snore

Both loud and sad.


Or sits besides the chinaware,

Sits mouthing meekly in a chair,

With over-curled, hard waving hair

Above her eyes.

Or grins too vacant into space—

A vacant space is in her face—

Where nothing came to take the place

Of high hard cries.

Or yet we hear her on the stairs

With some few elements of prayers,

Until she breaks it off and swears

A loved bad word.

Somewhere beneath her hurried curse,

A corpse lies bounding in a hearse;

And friends and relatives disperse,

And are not stirred.

Those living dead up in their rooms

Must note how partial are the tombs,

That take men back into their wombs

While theirs must fast.

And those who have their blooms in jars

No longer stare into the stars,

Instead, they watch the dinky cars—

And live aghast.


Djuna Barnes

THE BOOK OF REPULSIVE WOMEN





From Fifth Avenue Up

Someday beneath some hard
Capricious star—
Spreading its light a little
Over far,
We'll know you for the woman
That you are.
For though one took you,
hurled you
Out of space,
With your legs half strangled
In your lace,
You'd lip the world to madness
On your face.
We’d see your body in the grass
With cool pale eyes.
We'd strain to touch those lang'rous
Length of thighs,
And hear your short sharp modern
Babylonic cries.
It wouldn't go.
We’d feel you
Coil in fear
Leaning across the fertile
Fields to leer
As you urged some bitter secret
Through the ear.
We see your arms grow humid
In the heat;
We see your damp chemise lie
Pulsing in the beat
Of the over-hearts left oozing
At your feet.
See you sagging down with bulging
Hair to sip,
The dappled damp from some vague
Under lip,
Your soft saliva, loosed
With orgy, drip.
Once we'd not have called this
Woman you—
When leaning above your mothers
Spleen you drew
Your mouth across her breast as
Trick musicians do.
Plunging grandly out to fall
Upon your face.
Naked—female—
babyIn grimace,
With your belly bulging stately
Into space.
Djuna Barnes

Djuna Barnes


We are adhering to life now with our last muscle - the heart.