segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Boneca de Tripas - Parte 2


Um pensamento que não mata nem morre. O medo, o terror, o pânico. Noite adentro, a mastigar, a ruminar, impedindo os olhos de descansarem. As pálpebras carregadas de ansiolíticos. E o pensamento a martelar, a mastigar incessantemente, roldanas de aço até ao delírio. E eu a querer apenas dormir, fechar os olhos, a tentar cavalgar a onda sem sucesso. A ser engolida pelas palavras que se soltaram dentro da minha cabeça, como notas numa composição insana. Acocorada, debruçada sobre o meu ventre, a desejar, a implorar uma pausa. Esmagada contra a almofada, os vincos da roupa impressos na minha carne.



Liberdade. Quantos comprimidos são precisos para matar o pensamento? O pensamento que me rói do avesso. Sim, exactamento quantos, para que esta porra acabe?



A geometria das paredes alonga-se, o tecto deixou de ser o companheiro vítreo da adolescência eufórica, nele não se projectam mais as esperanças de um futuro mais leve, mais brilhante. Desde que o medo se infiltrou, vísceras adentro sem piedade. Começou a roer em silêncio e apoderou-se de tudo. Medo de ter medo. Um intruso indesejado que se tornou imperador impiedoso.



Um pensamento que não mata nem morre. Vai moendo. Lentamente. Sorrateiramente. Minando o que pode. Um líquido corrosivo. Um sabor a ferrugem e crime na boca. O medo de que a boca se volte para dentro e comece a triturar tudo, os dentes, o estômago, a memória e a dignidade. Olhar para o real e não dar fé nele. Olhar para as paisagens urbanas e apenas o paladar de papel de jornal na minha garganta. Olhar os rostos dos outros e não decifrar neles a minha humanidade.



E o medo a galopar, veloz no meu colo, no meu peito, a trepar pelo pescoço, numa tensão de máquina no meu queixo. Olhar uma mãe e a sua filha e tremer. Leveza e cães. Haverá uma falha, uma brecha no real que me possa acolher? Afinal quantos comprimidos, ao certo, são necessários para matar o pensamento? Fórmula desejada...



O cansaço, a insónia, as olheiras, o suor abafado e condenado. Do outro lado, alguém a batalhar contra o sono, contra a morte certa e urgente. Contra o esquecimento. Os fantasmas brancos da madrugada e a certeza de existirmos sós naquela hora desassossegada. A luz amarela e violenta do candeeiro a insinuar que o mundo acabou e que se esqueceu de nós. De nos vomitar na nossa artificialidade. Cinco da manhã. Agitação. Morangos silvestres sem uma história prestes a ser apagada.



Seis. Sete. Até que tudo se imobiliza, a noite abraça o universo que afinal se resume a um pensamento obsessivo de um, que insite nos bastidores da consciência, sem comparecer ao seu encontro. Uma sereia, morangos silvestres de novo e uma melancia. A minha história a fugir para um disparate qualquer. Ou os comprimidos fazem efeito e adormeço, desmaio, desligo ou passo a ser apenas vestígios de ossos e sangue que um pensamento mastigou a seco. E se não houver espuma do mar? Se não vier o dia seguinte? Se não vierem dias melhores para que possam voltar os dias piores, para que tudo acabe bem para depois ficar tudo mal?



Como desligo isto? Quantos comprimidos afinal? Quantos? Para derrotar a raiz tuberculosa do medo.

Corpo Presente


Vencedor do Man Booker 2007, este livro de Anne Enright é possante, irado e implacável. Cada vez me convenço mais que a escrita das mulheres, desde sempre treinadas para a dor e para o silêncio, consegue ser mais impiedosa. Um dedo afiado na ferida; é isso que Veronica Hegarty faz a si própria depois do suicídio do seu irmão mais próximo. Obriga-se a recordar os traumas de infância onde cada um se tornou um caso perdido, as discórdias de jovens adultos que afastaram a fraternidade de ambos.


«A bebida não era o seu problema, mas acabou por se tornar o seu problema, o que foi um alívio para todos os interessados. «Estou um pouco preocupada com Liam, por andar a beber», portanto, após algum tempo, já ninguém conseguia ouvir nada do que ele dizia.
O que era merecido, pois só dizia merda. O álcool deu cabo dele, como sempre faz. Mas estou a tentar perceber quando foi – quando deixei de me preocupar com ele e comecei a preocupar-me por ele beber


Veronica recorda a descoberta de que Liam era molestado pelo senhorio da avó, o homem que esta rejeitou na sua juventude, que possivelmente também terá molestado a sua mãe e a própria Veronica. Escava no sangue em busca do erro, do mal-entendido onde as vidas e o futuro deles se confundiu. Obriga-se a embater desastrosamente na sua vida.


Até que ponto as nossas famílias disfuncionais (porque todas o são, não fossem elas compostas por pessoas) e os pequenos grandes incidentes, segredos e traumas condicionam a nossa vida de adultos? Seremos sempre eternas crianças em busca de paliativos para curar as cicatrizes dos nossos tímidos começos?


«Olho para as pessoas em fila para pagar e pergunto-me se estarão a ir para casa ou a afastar-se das pessoas que amam. Não há outras viagens. E penso que constituímos refugiados peculiares, a fugir do nosso próprio sangue, ou para junto do nosso próprio sangue; a pulsar para trás e para a frente ao longo das veias fantasmagóricas, que envolvem o mundo numa mixórdia de sangue.»