domingo, 25 de maio de 2008

Klaus Klump - A Inquietante Estranheza


"Há exercícios para treinar a verdade como, por exemplo, ter medo. Ou então ter fome. Depois restam exercícios para treinar a mentira: todos os grupos são isto, e todos os negócios. Estar apaixonado é outra forma de exercitar a verdade.



Klaus comandava pela primeira vez os negócios da família. Não tinha medo, nem fome, nem estava apaixonado. Cada dia era, pois, um exercício novo da mentira. Já tinha feito a vida real (tinha-a feito como se faz uma construção, algo material), agora começara o jogo: ganhar mais dinheiro ou menos. Nada de essencial: mas a mentira interessante é aquela que quase parece verdade. Klaus sentia a necessidade de transformar aquele jogo em algo fundamental. E faria isso até ao fim. Como fizera antes na guerra e na prisão. Quase que não via, aliás, diferenças nas três situações: era preciso ganhar ou não perder, e ele estava só. Eis tudo."



Foi o primeiro livro de Gonçalo M. Tavares que li. Se gostei ainda não sei, mas que me atingiu em cheio e com força naquilo que mais me move, isso sim, posso afirmar. Em tempos de guerra e angústia como os que vivemos, ninguém sai incólume: "Ninguém escapa à lógica económica. Os ganhos, as perdas, o lucro. Poderá a tua moeda ser estranha – o teu corpo, por exemplo – mas é moeda: utensílio de troca”.

Acredito profundamente que vivemos numa época de guerra total, de um contra todos e que só os mais astutos se salvarão - os mais sensíveis irão apodrecer lentamente nas suas confortáveis camas, com sonhos intermitentes induzidos por ansiolíticos e álcool, por que não sabem, não conseguem ver de que barricadas os miram. É a pior forma da guerra e do mal: dormir com o inimigo sem o suspeitar. Uma arma apontada e visível acaba por ser mais confortável.


sexta-feira, 23 de maio de 2008

Sapho - Costumes de Paris



Escolhi este livro porque no seu prefácio António Lobo Antunes diz tratar-se da mais bela história de amor que leu e, como sempre tive um fraquinho muito especial por histórias de amor plenas de magia, arrebatamento e ruína, não pude deixar de comprar a tal obra e empenhar-me na sua leitura.


Terminada a leitura num dia de ressaca inquietante, fiquei com uma sensação estranha. Afinal, a mais bela história de amor não ultrapassa o retrato de uma intimidade quotidiana entre um jovem aspirante a cônsul, Jean Gaussin, e uma mulher voluptuosa mais velha e mestra nas artes amorosas, Fanny, conhecida por todos os homens como Sapho.


É numa festa parisiense de mascarados que Fanny escolhe o jovem Jean para lhe devotar toda a sua vida e paixão. Durante 5 anos, Jean acredita não amar Fanny, vivendo obececado com a ideia de rompimento, que vai adiando, até se ver completamente enredado na intimidade doméstica que entretanto se firma entre os dois. O fim adivinhei-o desde o início, será Fanny, a amante descontrolada, que irá abandonar o hesitante amado: os que dão e os que amam partem sempre mais levemente dos que recebem, e é nestes que a falta do outro se faz sentir de modo mais agudo com o peso das carícias e palavras de outrora - ser amado e não amar, eis a maior cilada.


As ligações amorosas, aquelas que tendemos a julgar as mais livres e as mais íntimas, colocam mais em jogo do que a pura espontaneidade. Nelas projectamos, todos os nossos fantasmas e tendemos a escolher - ou ser escolhido - por um parceiro que nos toca nas questões mais profundas, que não são nunca as melhores. Gaussin cai na armadilha do ciúme e do vício, sem saber que as suas redes são mais poderosas do que as do amor e empatia. Esta é a história de amor mais honesta que alguma vez li; nela podemos ler a transição de um modelo romântico da coisa para algo que ainda não é possível classificar, embora estejamos todos a trabalhar nisso.


"Pudor, reserva, para quê? Os homens são todos iguais, presas de uma raiva de vício e de corrupção, e este garoto não era diferente dos outros. Engodá-los com aquilo de que gostam é ainda o melhor meio de os segurar. E o que ela sabia, essas depravações do prazer que nela tinham inoculado, Jean, por sua vez, aprendia-as, para as passar a outras. Assim corre o veneno e se propaga, queimadura do corpo e da alma, semelhante a esses archotes de que fala o poeta latino, e que passavam no estádio de mão em mão."


domingo, 18 de maio de 2008

Gente Feliz com Lágrimas - A Persistência das Velhas Questões


Recomendado por duas pessoas muito queridas, Gente Feliz com Lágrimas foi talvez uma das leituras mais penosas e viscerais da minha vida. Nele relembrei a minha infância, o meu pai severo e distante, as primeiras desilusões e a formação de um mistério no qual sempre me soube contida mas nunca decifrada.


À sua maneira, o romance de João de Melo, cativa pelas várias vozes narrativas, pelas metáforas e adjectivos multi-sensoriais extremamente inteligentes, pela história de amor e veneração de Nuno e Marta, e repele pelo modo heavy como nos relata a saga de uma família condenada pelos afectos sufocados, que vão condenando gerações através da herança de gestos que não se efectivaram, de palavras que não se cumpriram. Nos espaços que o afecto não preenche, instala-se a falta e uma solidão inescapável que acaba por consumir a possibilidade mais pura de amor, porque a violência original, a cena primitiva da nossa concepção dificilmente é eliminável.


«Acontecia então que o meu pobre cão de pai latia de prazer. Prisioneira daquele corpo, a mãe sufocava ainda, amarrada pela inconcebível e obstinada força dos braços dele. Era quando ele se esvaía todo na sua golfada morna, pastosa e tão orgulhosamente masculina. Se não repetissem - e raramente o faziam - a mãe erguia-se, ia ao bacio, esfregava-se energicamente a um pano para nós desconhecido ou mesmo inexistente. Quando voltava para a cama, ele dormia tão profundamente como a paz das folhas de figueira nas noites de Verão. Dormia com o mesmo sono dos ratos, sem memória alguma e sem qualquer remorso de nos ter feito o mal do barulho, o mal de ser o único, o dono e senhor daquele corpo profanado no seu pudor (...).


Toda a minha vida girou afinal em torno e em função dessa paixão primitiva e anterior (...). Porque quando tive o outro destino de Marta, dei por mim a amá-la à maneira dele, a gostar de dar-lhe palmadinhas nas nádegas e a fazê-la gemer sob a força dos mesmos abraços. Contudo, muitos anos mais tarde, quando naufraguei nas águas revoltas da minha relação com Marta e perdi o pé à vida, apresentei-me ao mais louco psiquiatra de Lisboa. Um dedo categórico espetou-se-me à frente do nariz e deixou-me petrificado:

- O senhor está é inventando a infelicidade e ficcionando o seu triunfo: parece uma noivinha angustiada na noite de núpcias. A gente pega no escafrando, meu caro Pier Paolo Pasolini, e vai é mergulhar no lodo da infanciazinha. Percebido? Venha daí comigo».


Gente feliz com lágrimas poderia ser a melhor expressão para descrever o povo português, e trata afinal disso mesmo, de gente feliz com lágrimas. De gente que conhece a esperança da infância, a empatia dos irmãos, a crueza amarela de uma pai que nunca se senta para cear no nosso coração, os arrebatamentos do primeiro amor, a ternura de alguns encontros rápidos, a dureza da traição, um rabo sentado num domingo em frente à televisão a engordar solitariamente e uma segunda pomba da paixão que pousa distraidamente no nosso ombro adormecido. O resto destes risos que choram e prantos que riem é uma certa ferida no olhar de quem perdeu a inocência cedo demais, é afinal literatura!

domingo, 11 de maio de 2008

Trilogia de Nova Iorque - A vertigem da desrazão


A Trilogia de Nova Iorque de Paul Auster - autor que conheço de modo leviano, tendo apenas lido o comovente Timbuktu - compõe um mosaico de histórias inquietantes edificadas pelo imaginário de uma cidade sombria e misteriosa. Brincando com as possibilidades do real e dos seus abismos, Auster desafia constantemente e com mestria as expectativas do leitor, sem o nunca o deixar com um sentimento de fraude.

O mais marcante neste livro, composto por três histórias que se entrelaçam como um novelo e nos enredam de tal modo que acabamos por não encontrar o fio do seu feitiço, é o modo como as personagens são arrastadas pela vertigem do irracional e do vazio, sempre comprometidas na sua perdição.

No conto «A Cidade de Vidro», Quinn, um homem devastado pela trágica perda da mulher e do filho, é perturbado a meio da noite por um telefonema de um homem que procura um detective chamado Paul Auster. O acaso despoleta uma série de aventuras e desventuras e Quinn acaba por se empenhar numa identidade que não é sua, até à perda de qualquer identidade, com uma persistência que apenas a solidão e a sua deriva poderão justificar.

As personagens errantes desta cidade ausentam-se do seu quotidiano por um acaso e ficam a viver num tempo marcado apenas pelas suas obsessões, esquecendo rapidamente os meses, os anos e a face do outro, e a escrita de Paul Auster devolve-nos de modo arrepiante o vazio das suas almas estilhaçadas.

Descobrimo-nos no fim que se tratam de seres semelhantes a nós, reveladas de outro modo pela desligação do quotidiano dos mesmos. Humanos apesar de toda a incomunicabilidade e degradação, que tentam sobreviver num mundo em que as velhas respostas já não servem para sossegar as novas inquietações. «Pois as nossas palavras já não correspondem ao mundo. Quando as coisas eram um todo, podíamos confiar nas nossas palavras para nos exprimirem. Mas essas coisas fragmentaram-se aos poucos, rasgaram-se, ruíram num caos. E, no entanto, as nossas palavras permaneceram as mesmas. Não se adaptaram à nova realidade» (p.85).
Das histórias que compõem a trilogia, a que mais me tocou foi a que se intitula «O Quarto Fechado», narrada por um homem que se ocupa da mulher e obra de um amigo de infância enigmaticamente desaparecido. Gostei particularmente da cena de sexo entre o narrador e a mãe do amigo ausente, pela crueza da descrição: «Embora eu estivesse embriagado, não estava assim tão aturdido que não soubesse o que fazer. Mas nem a culpa foi suficiente para me deter. Este momento acabará por passar, dizia-me a mim próprio, e ninguém sairá magoado. Não tem nada a ver com a minha vida, não tem nada a ver com Sophie. Mas nessa altura, enquanto aquilo acontecia, descobri que era mais do que isto. O facto é que eu estava a gostar de foder a mãe de Fanshawe - mas de um modo que não tinha nada a ver com prazer. Eu estava consumido, e pela primeira vez na minha vida não encontrei nenhuma ternura dentro de mim. Estava a foder movido pelo ódio, e estava a transformar aquilo num acto de violência, dilacerando esta mulher como se quissesse pulverizá-la. Eu tinha penetrado na minha própria escuridão, e foi ali que aprendi a coisa mais terrível de todas: que o desejo sexual também pode ser o desejo de matar, que chega uma altura em que é possível escolhermos a morte em detrimento da vida» (p.271).
Mais do que seres de luz e razão como pretendiam os iluministas, somos também seres de sombras movidos por teias irracionais que nos arrastam até à perdição, e é no sexo que podemos vislumbrar a nossa fatal inclinação para a perda, a rendição total numa petit mort, que poderá ser também a única possibilidade de entrega. Somos mais consumidos do que livres consumidores e é geralmente nas acções que julgamos despropositadas que um sentido e nós próprios encontramos uma forma de fuga para outras possibilidades desacorrentadas da obrigação da racionalidade. Trilogia de Nova Iorque fala de tudo isto e muito mais, é uma espécie de policial pós-existencialista que nos arrepia não pelo crime mas pelo castigo que é cumprido pelo próprio carrasco. Os seus personagens colaram-se à minha pele durante várias semanas em que não pude deixar de perceber o apelo do abismo - popularmente chamado de vertigem.